A pergunta-tema de nosso breve artigo poderia também ser feita de outros modos, tais como: por que não temos somente um Evangelho? É necessário para a nossa salvação e o conhecimento da Verdade termos mais do que um Evangelho? Por outro lado, poderíamos também nos fazer a pergunta contrária, isto é: por que só temos quatro evangelhos? Para responder a essas perguntas faremos um percurso, partindo da seguinte questão “o que é um Evangelho?”, para então culminarmos nos critérios de credibilidade que pautaram a escolha dos “quatro evangelhos”, que temos em nosso cânone bíblico.
O que é um evangelho?
O termo deriva do grego εὐαγγέλιον, que significa, no mundo grego antigo, “mensagem de vitória”, ou “feliz mensagem”. Este termo já era utilizado por autores profanos e significava tanto a mensagem como o seu portador. No Novo Testamento, o termo indica a mensagem de salvação e por isso é, primeiramente, a “boa notícia” dada por Deus aos homens: Jesus Cristo, o Evangelho do Pai¹. Esta mensagem, primeiramente pregada, foi colocada por escrito por Paulo, que é como que “fundador” da literatura neotestamentária. Por isso, quando Paulo fala do seu Evangelho (cf. Rm 16,25), refere-se não a um livro, mas sim à mensagem salvífica que lhe foi confiada.
Todavia, algo novo se realiza com o evangelista Marcos quando, no início de seu relato, escreve: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo. Filho de Deus” (Mc 1,1). O “Evangelho” ao qual se refere começou a ser interpretado não somente como a mensagem salvífica, mas também – como muito tempo depois foi chamado – como o gênero literário por meio do qual a mensagem divina é veiculada; por consequência, por volta do ano 150 d.C., com São Justino (Apologia, I, 66, 3) tal termo começa também a designar o livro bíblico².
No que se refere ao gênero literário “evangelho”, podemos destacar algumas de suas características fixas: é uma elaboração orgânica, com o estilo de proclamação narrativa, contendo os principais elementos de salvação oriundos da vida de Cristo, começando – ao menos – pelo batismo, continuando pela narração dos milagres operados por Jesus e seguindo até a sua morte de cruz e ressurreição³.
Um só evangelho não seria suficiente para a nossa salvação?
Cabe fazer aqui um esclarecimento: quando nos referimos a evangelhos, aludimos aos quatro livros com o gênero literário “evangelho”. Todavia, quando mencionamos o substantivo “Evangelho” no singular, então nos referimos à mensagem salvífica, cujo conteúdo é a própria vida de Cristo. Sem dúvida, o Evangelho é único e indiviso, como o próprio Cristo. Mas, como bem esclarece Irineu, o Verbo «nos deu um [único] Evangelho quadriforme»⁴. Desse modo, podemos nos perguntar: um só texto Escrito dos Evangelhos, não seria o suficiente?
Para aprofundar a nossa reflexão e buscar compreender melhor a questão, gostaria de trazer dois textos retirados das duas conclusões do Evangelho de João. O primeiro texto diz: «Jesus fez ainda, diante de seus discípulos, muitos outros sinais, que não se acham escritos neste livro. Esses, porém, foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome» (Jo 20,30-31). O segundo, afirma: «Há, porém, muitas outras coisas que Jesus fez e que, se fossem escritas uma por uma, creio que o mundo não poderia conter os livros que se escreveriam» (Jo 21,25). Destas palavras extraímos, ao menos, dois ensinamentos fundamentais sobre os evangelhos:
- Cristo fez diante de seus discípulos mais do que poderia ser contido em um único relato, ou mesmo em muitos relatos; infere-se, então, que convinha ter outros testemunhos.
- O que foi escrito tem por finalidade a fé em Cristo e o acesso, por parte de quem crê, à vida que dEle provém.
Então, por que não temos mais do que quatro evangelhos?
Primeiro elemento a ser pormenorizado aqui está no início do Evangelho de Lucas, que diz: «visto que muitos já se colocaram a compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós – conforme no-los transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra – a mim também pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio, escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste» (Lc 1,1-4).
Segundo o testemunho de Lucas, muitos se colocaram a compor os relatos da vida de Jesus. De fato, temos acesso a textos sobre a vida de Jesus, sobretudo de sua infância, compostos em um período um pouco posterior; estes são os evangelhos Apócrifos, e ao menos doze deles chegaram a gozar de algum prestígio inicial dentro da Igreja⁵. Todavia, logo foram descartados.
Resta-nos então responder a uma última pergunta, isto é, qual critério foi utilizado para se chegar à canonicidade dos quatro relatos evangélicos? Cabe dizer que estes critérios se estendem a todo o Novo Testamento. Eis os critérios fundamentais:
- “Regra da fé”: isto é, a conformidade do documento em questão com a Tradição cristã fundamental, reconhecida como normativa pela Igreja.
- “Apostolicidade”: significa que o escrito precisava gozar da autoridade apostólica; na prática, ter sido escrito por um apóstolo ou por alguém que esteve junto aos apóstolos, recebendo assim o testemunho autêntico daqueles que viram e ouviram o Senhor.
- A recepção ininterrupta e difundida nas igrejas locais: as igrejas locais criavam um verdadeiro consenso quando admitiam os mesmos escritos de forma ininterrupta (diferente dos apócrifos), reconhecendo neles a autoridade apostólica e a conformidade com a tradição; deste modo, estes escritos gozavam de credibilidade diante da Igreja Universal⁶.
Como conclusão, gostaria de citar aqui o antigo e válido testemunho de Santo Irineu a respeito da elaboração dos quatro relatos evangélicos e que sintetizam os critérios de canonicidade:
«Assim, Mateus publicou entre os judeus […]. Depois […], também Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, nos transmitiu por escrito o que Pedro anunciava. Por sua parte, Lucas, o companheiro de Paulo, punha num livro o Evangelho pregado por ele. E depois, João, o discípulo do Senhor, aquele que recostara a cabeça ao peito dele, também publicou o seu Evangelho, quando morava em Éfeso, na Ásia.
Eles todos nos transmitiram que há um só Deus, Criador do céu e da terra, anunciado pela Lei e pelos profetas, e um só Cristo, Filho de Deus. E se alguém não acredita neles despreza os que tiveram parte com o Senhor, despreza ao mesmo tempo o próprio Senhor, como também despreza o Pai; e ele mesmo condena-se, ao resistir e opor-se à própria salvação»⁷.
E mais à frente, Irineu, refutando os hereges e defendendo a Tradição recebida – da qual faz parte o Evangelho quadriforme –, diz: «e quando, por nossa vez, os levamos [os hereges] à Tradição que vem dos apóstolos e que é conservada nas várias igrejas, pela sucessão dos presbíteros, então se opõem à Tradição […]»⁸. «Portanto, a Tradição dos apóstolos, que foi manifestada no mundo inteiro, pode ser descoberta em toda Igreja por todos os que queiram ver a verdade»⁹.
Referências utilizadas
1 – Cf. G. Strecker, «εὐαγγέλιον» in H. Balz – G. Schneider, Dizionario Esegetico del Nuovo Testamento, I, Paideia, Brescia 2004, 1427-1438.
2 – Cf. R. Fabris, in R. Fabris – G. Barbaglio – B. Maggioni, I Vangeli, Cittadella, Assisi 20082, 20.
3 – Cf. J.–M. Sánchez Caro, in L. Alonso Schökel – J. Asurmendi [et al.], La Bibbia nel suo contesto, Paideia, Brescia 1994, 365.
4 – Irineu de Lião, Adv. haer., III, 11,8.
5 – Cf. B. M. Metzger, Il canone del Nuovo Testamento: Origine, sviluppo e significato, Paideia, Brescia 1997, 148-149. Podemos elencar alguns: o Proto-evangelho de Tiago, a História da infância de Tomé, A História do carpinteiro José, o Evangelho do nascimento de Maria e o Evangelho de Bartolomeu. Cf. Ibid.
6 – Cf. Ibid. 219-221.
7 – Irineu de Lião, Adv. haer., III, 1,1.
8 – Irineu de Lião, Adv. haer., III, 2,2.
9 – Irineu de Lião, Adv. haer., III, 3,1.
Por Elton Alves
os 4 evangelhos sao para dar um nó na cabeça do individuo. Pra manter o cara pensando
Parabéns Elton, pela belíssima explicação do porquê dos 04 Evangelhos.
Bendito seja Deus por nos deixar o Depósito da Fé, que é a Igreja Católica. Assim a Sagrada Tradição se constitui em elemento essencial para a credibilidade dos 04 Evangelhos, bem como a aceitação ininterrupta nas comunidades cristãs.
Santo Irineu, além do testemunho, pois foi discípulo de São Policarpo, que por sua vez era discípulo de São João, foi o primeiro a chamar a Igreja de Católica.
Essa é a nossa Mãe Igreja.
Bendito e louvado seja hoje e sempre nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Para sempre seja louvado.