Prometeu Acorrentado é uma das mais importantes realizações teatrais da Grécia Antiga. Junto com Édipo Rei e Antígona, de Sófocles e, talvez, Medeia, de Eurípedes, todas elas escritas e encenadas no século V a.C., período em que as grandes obras teatrais do Ocidente surgiram, formam a base das realizações cênicas do mundo antigo. Representa também um dos pontos centrais da obra de Ésquilo, que foi o primeiro grande poeta trágico grego.
Talvez seu sucesso inicial se deva a uma feliz realização de apresentar para o teatro antigo um mito muito conhecido entre os gregos: o mito de Prometeu. Prometeu era um dos titãs gregos que, segundo a mitologia, eram seres primeiros, filhos de Gaia (divindade identificada como a Terra) e Urano (divindade identificada como o Céu), anteriores mesmo àqueles deuses mais conhecidos, como Zeus, Atena e Apolo.
Em determinado momento, Prometeu, que era próximo de Zeus, percebe que este oprimia os humanos, escondendo destes o fogo necessário para o cozimento dos seus alimentos. Ou seja, não só Zeus escondeu o fogo dos humanos, mas também impediu que estes se alimentassem de cevada, dos cereais, etc. Assim, Prometeu, comovido com a situação, ludibria Zeus e entrega um pouco de fogo aos humanos.
Dessa forma, ao entregar um pouco do fogo que Zeus havia escondido, Prometeu dá a oportunidade de os homens trabalharem com esse fogo para se sustentar. Importante dizer que, antes do escondimento do fogo por Zeus, os homens dispunham de fogo à vontade, não necessitando sequer de trabalhar com ele, pois as comidas já se encontravam cozidas. Jean-Pierre Vernant, estudioso dos mitos, diz-nos:
“Ao mesmo tempo que o fogo, Zeus escondera dos homens a vida. A vida, ou seja, o alimento da vida, os cereais, o trigo. (…). Não existia trabalho, não existia lavoura. O homem não estava submetido ao esforço, nem ao cansaço, nem à exaustão para conseguir os alimentos dos quais, justamente, sua vitalidade precisava. Agora, por escolha de Zeus, o que era espontâneo torna-se laborioso, difícil. O trigo está escondido”.[1]
Ao roubar uma parte do fogo que Zeus privara dos humanos, Prometeu dá a estes a oportunidade de não mais viver na escuridão na qual se encontravam, mas agora eles terão a oportunidade de trabalhar com esse fogo para obter o alimento. Evidentemente, a subversão de Prometeu não passará desapercebida por Zeus: Prometeu sofre o castigo de, acorrentado, ter todos os dias seu fígado devorado por uma águia e, depois, logo em seguida, ser reconstituído para, no dia seguinte, ser devorado de novo e, assim, sucessivamente.
A partir disso, inicia-se a tragédia Prometeu Acorrentado. Nosso herói lamenta-se da intolerância e irredutibilidade de Zeus, mas não se arrepende do ato que praticou. Assim, ele diz-nos:
“O seu desejo (de Zeus) era extinguir a raça humana a fim de criar outra inteiramente nova. Somente eu, e mais ninguém, ousei opor-me a tal projeto impiedoso; apenas eu a defendi, livrei os homens indefesos da extinção total, pois não consegui salvá-los do profundo Hades (nome do deus soberano das profundezas infernais). Por isso hoje suporto dores cruéis, dilacerantes até para quem as vê. Por ter-me apiedado dos frágeis mortais negam-me os deuses todos sua piedade e estou sendo tratado de modo implacável, num espetáculo funesto até a Zeus!”[2]
A tragédia Prometeu Acorrentado não apresentada grandes ações. Com poucos personagens, como Hefesto, deus do fogo, que é responsável por acorrentar Prometeu, Hermes, arauto dos deuses, responsável por tentar persuadir Prometeu a se arrepender ante Zeus, Io, que é uma mortal amada por Zeus a quem Prometeu revela uma profecia, podemos dizer que a maior ação da tragédia é a infusão de sentimentos prometeicos. O suplício, a dor de Prometeu é tematizada. Não apenas a dor pela dor, mas a dor, que é, na perspectiva de Zeus, uma expiação do ato criminoso cometido por Prometeu ao dar, sem o seu consentimento, fogo aos homens, mas, essa mesma dor é, na perspectiva do nosso herói, sacrifício, resultada da solidarização com os humanos. Dessa forma, Werner Jaeger, estudioso do mundo grego, diz-nos:
“Em Prometeu, a dor torna-se o sinal característico do gênero humano. (…). Todos os séculos viram nele a imagem da Humanidade. Todos se sentiram acorrentados ao rochedo e frequentemente participaram no grito do seu ódio impotente. Embora Ésquilo o tenha encarado sobretudo pela via dramática, a concepção fundamental do roubo do fogo encerra uma ideia filosófica de tão grande profundidade e grandiosidade humana, que o espírito do homem jamais poderia esgotar.”[3]
Pela própria história grega de guerras, conflitos entre cidades-estados e povos orientais, foi-se concebendo a dor como algo muito próprio do homem, pois o sofrimento ou a dor expõe seus limites, diferenciando-o, assim, dos deuses, que são imortais. Uma grande preocupação do pensamento grego antigo era saber quem, de fato, é o Homem. O homem é para os gregos harmonia, moderação. É aquele que não deve jamais se encher de vaidade e desejar ser um deus, pois se o fizer, o próprio destino se encarregará de puni-lo.
Pela dor, portanto, o homem não apenas adquire consciência de quem é, mas é capaz de produzir coisas belas. Sobre isso ainda Jaeger nos diz:
“Para Hesíodo (outro poeta grego) Prometeu era apenas um prevaricador castigado pelo crime de ter roubado o fogo de Zeus. Com a força de uma fantasia que jamais os séculos poderão admirar suficientemente, Ésquilo descobriu nesta façanha o símbolo da cultura. Prometeu é o espírito criador da cultura, que lhe descobre tesouros e assenta em bases seguras a vida débil e oscilante do Homem”[4].
Prometeu não apenas roubou um pouco do fogo dos deuses para dar aos humanos, mas sim deu, pelo fogo, a luz à humanidade. Deu aos homens a capacidade de produzir, de transformar. A cultura, portanto, não é outra coisa senão o fogo dos deuses que ilumina o homem e o ajuda a transformar o mundo.
Dessa forma, podemos notar que, em Prometeu Acorrentado, estão profundamente ligados dor e conhecimento. Não há conhecimento que não venha marcado pela dor da compreensão da própria limitação do homem em conhecer, mas também não há dor que não gere uma compreensão ou um conhecimento de quem se é.
[1] VERNANT, Jean-pierre. O universo, os deuses, os homens. Tradução de Rosa Freire D´Aguiar. Companhia das Letras, São Paulo, 2000, pp. 66.
[2] ÉSQUILO. Prometeu acorrentado. Tradução de Mário da Gama Kury. Jorge Zahar Ed. Rio de Janeiro, 1993, pp. 26.
[3] JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Artur Parreira. 3 edição. Martins Fontes. São Paulo, 1995, pp.310.
[4] JAEGER, Werner. Paideia: a formação do Homem Grego. Tradução de Artur Parreira. 3 edição. Martins Fontes. São Paulo, 1995, pp.309.
Ficha
Ano: 2005 / Páginas: 120
Idioma: português
Editora: Martin Claret
Boa leitura!