Para nós que cremos e a partir da fé praticamos a religião cristã, seja talvez interessante analisarmos a palavra religião. O substantivo religião vem do latim religio. Para o escritor cristão Lactâncio (+330 d.C.), a palavra religio viria do verbo religare: ligar de novo, estabelecer novo laço. Religião seria atitude de piedade e devoção que religa, une de novo os homens a Deus.
Para Cícero (106-43 a.C.), religio viria do verbo relegere que significa ajuntar de novo, recolher, retomar, no sentido de enlear de novo o fio desenrolado de um novelo. Significa também, percorrer de novo um caminho já feito, ler, ponderar, repassar cuidadosamente um texto já lido.
Relegere é composto de re e legere. Re significa: de novo, originariamente, retomado ou retomando. Legere significa: escolher, eleger, selecionar, ler. Legere insinua também a acepção de colher, ajuntar, no sentido da colheita bem feita, bem escolhida. O melhor de uma colheita é o dom, a graça do empenho da lavoura. O homem cuida e espera o dom do nascer, crescer, florir e sazonar da vida que está na semente. Legere, colher é pois a recepção grata de um mistério anterior e maior que se desvela vindo até nós.
É nesse sentido de legere que Cícero entende a palavra religião, como sendo o cuidado, o interesse, cheio de recolhimento, portanto, o amor e a doação dedicada e grata aos deuses (Cícero era um pagão) e ao seu culto. É, pois, uma atitude de deixar ser os deuses eles mesmos, neles mesmos e não colocá-los dentro da perspectiva de nossos interesses. As pessoas que têm essa postura são os religiosos.
Destes, se distinguem os supersticiosos, pessoas que rezam e rezam desesperadamente e oferecem sacrifícios aos deuses, por exemplo, para que seu filho doente sobreviva custe o que custar (em latim sobrevivente se diz superstes, do qual vem a palavra supersticioso). O supersticioso é aquele cujo relacionamento para com os deuses não tem limpidez da atitude de respeito e cuidado em deixar ser os deuses eles mesmos. Portanto, não tem a atitude de relegere, da religião, mas recorre aos deuses para colocá-los a seu serviço.
A palavra “religião”, portanto, se refere ao cuidado, ao interesse cheio de respeito para com o ‘divino’; se refere à atitude de deixar ser o divino ele mesmo, nele mesmo, sem colocá-lo dentro da mira dos nossos interesses e projetos; é a atitude de piedade e devoção para com o divino. Seja qual for a religião, mesmo que tenha uma forma bastante decadente e falsificada segundo a concepção cristã, o termo religião se refere à atitude de relacionamento, no qual de um lado temos o homem e do outro “Deus”. A palavra Deus, porém, aqui não diz muito, só indica talvez uma direção. É que a palavra Deus é uma palavra-origem. As palavras-origem ou dizem tudo ou quase nada. Tudo para quem está por dentro. Quase nada para quem está por fora.
Por isso, a palavra “religião” aponta antes para uma tarefa, para a responsabilidade de uma busca, de uma questão engajada, sincera e radical, na qual devemos nos abrir para uma dimensão inteiramente nova. Dimensão que, à primeira vista, parece vaga, indeterminada, apenas como que indicando uma direção, não porque é ilusão ou opinião particular, mas porque é de uma realidade anterior a nós, abissalmente mais vasta, mais profunda e originária do que todas as nossas possibilidades e medidas; uma dimensão que é real, realíssima, mais real do que todas as nossas objetividades e subjetividades, por ser a condição da possibilidade do nosso ser e conhecer.
Dom Fernando Mason
bispo diocesano de Piracicaba (SP)