No meio da noite agitada, o barulho do trânsito pesado calou-se para deixar ouvir o grito de dezenas de vozes que, em meio ao pranto, berravam: “Socorro! Sequestro!” Como assim? Quem ousava praticar sequestro em plena noite de Natal?
Pensei logo em tráfico de pessoas para a prostituição, para retirada de órgãos ou para pura diversão e depois morte. Mas, não. Não eram vozes de crimes atuais. O crime era sequestro antigo, de dezenas de anos.
Desci em msio ao engarrafamento, sob protestos e avisos bem cearenses de “Volta, menina! Tem medo de tiro não, né?” Olhava ao meu redor, mas meu olhar cego pelas muitas luzes, não conseguiram detectar nada, ninguém. Só vozes misturadas. Resolvi fechar os olhos e então elas soaram claras, cada uma em seu próprio choro:
– “Aiuto! Rapimento!” Berravam estrelas desorientadas, a deslizar em rampas invisíveis.
– “iSocorro señora, qué me sacaran del camino!” Gritou um burrinho me atropelando, atrapalhado, atrapado, aprisionado em seu apavoramento, a fugir de Caracas sem saber aonde ir.
– “Heeeeeeeeeeelllllllllllpppppppp!” Bolavam sinos, ovelhas, pastores, pinheiros, todos “de verdade” misturados a enfeites natalinos sintéticos da Walmart.
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Num relance, pareceu-me entender o motivo da gritaria, o sequestro, a confusão, o desespero. Pernas moles, sentei-me ao chão para não cair: “Mas, será isso?”, pensava. Ouvi, de repente, como se só ele existisse no mundo, o som rachado de um pequeno tambor, agora com acústica duvidosa, rolando pelo chão até estacionar na minha perna: “Param pam pam pam!”
– “Anda logo, Emmir! Contrataram uma banda, não quero perder a apresentação! Lembra que estamos levando as bebidas. Vão ficar quentes”
Tudo tão pequeno, tão anacrônico, que o pranto explodiu de vez. A angústia que me sufocava vestiu-se de saudade. Passaram à frente dos olhos de minha alma os Natais sem bandas, sem shows, quando as próprias famílias ainda cantavam, devidamente desafinadas, as Nanas de Maria; quando as colheres acompanhavam, improvisadas, (sim, tocávamos colheres!) a salsa do “Mi burrito sabanero” e as crianças berravam a plenos pulmões: “tuti tuti tuti tuti”! Desfilavam recortes de Natais sem música digital e cenários artificiais de pseudo beleza fornecidos por telas impessoais. Natais cheios de canções ao Menino que “Scende dalle Stelle”, ainda isentos da perfeição da IA. Enchi-me de saudade dos avós e pais que nos faziam cantar em família, representar no Presépio Vivo, que, para a delícia de todos, incluía até o Rudolph, a Rena do nariz vermelho e a inexorável Noite Feliz que fechava a oração da família emocionada, enquanto o membro mais novo era colocado, aos berros e devidamente envolto em panos, na manjedoura improvisada.
Uma chuva fria e fina reuniu, ao meu redor, meus queridos: Rudolph, Stelle, Tambolinero, Burrito, agora todos calados, a me olhar com expectativa. Como libertá-los das “noisy nights” do consumismo, da demanda artificial, do politicamente correto, do natal-sem-Jesus, das mensagens vazias e tolas que alguém sempre inventa de escrever sem sequer mencionar Jesus ou a salvação? Como ajudá-los?
Uma rajada mais forte de vento desfez meu cabelo escovado, pintado e com belas mechas. A fortuna que havia gastado no salão para “arrasar” na noite de Natal agora parecia um ninho molhado em minha cabeça. Assustei-me: “Não, não, não!” EU é quem estava escrava das amarras da grosseira mímica em que se havia tornado o Natal. Era eu – e não meus personagens tão queridos – quem estava sendo sequestrada. Eles gritavam socorro para mim, não para si! Era EU a vítima!
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Rudolph se esticou e lambeu minhas lágrimas. Tambolinero pendurou em meu ombro seu tamborcito. Stelle me elevaram pelo ar e colocaram sobre Burrito. Sinos e pinheiros se colocaram empertigaram, a postos. Icei a ovelhinha de verdade, que enfiou-se no meu colo, por baixo do tambor. Foi então que Burrito, o sabanero, deu partida no seu trote-salsa sem sequer me pedir licença. Era, afinal, o caso de me salvar de um sequestro.
– “E aí, Emmir, você vem ou não vem?”
– “Nem pensar! Vou nada!” respondi, bem cearense. “Quero cantar, neste Natal. Reunir os filhos e netos, as tias mais taquaras rachadas. Quero ouvir tocar as colheres, que esmagam os dedos e, inadvertidamente, voam pelo ar. Quero escutar, encantada, os violões hesitantes apesar de todo ensaio, os pianos acústicos semitonados. Quero encher esse Natal de música de família, de humildes burrinhos de couro e osso que me conduzam a Jesus; de pequeninos tocadores de tambor que fazem sorrir a Mãe com suas nanas e ao Menino descido das estrelas do céu. Quero explicar ao Rudolph que o tal de papai noel não existe e que o trenó que ele costumava puxar atrás de seu nariz brilhante, na verdade não leva a Deus. Quero colocar o nariz de Rudolph bem pertinho do Menino Jesus, para diverti-lo enquanto il tambolinero toca, o burrico avança e a noite, agora silenciosa, se curva à alegria do Menino e se transforma em sons – humanos! – de felicidade e santidade. Holy Night”
Maria Emmir Oquendo Nogueira | Dezembro 2024
Referências para as músicas citadas:
Mi burrito Sabanero en caminho de Belen – música natalina tradicional da Venezuela, cantada em toda a America Latina. Conta a história de um burrico de savana que teria conduzido Nossa Senhora e São José a Belém.
El Tambolinero, ou El niño del tambor – música natalina tradicional de origem tcheca ou francesa, que conta a história de um menino que nada tinha a oferecer ao Menino Jesus exceto a música de seu pequeno tambor.
Rudolph, the red nosed raindeer – música natalina tradicional de origem americana, conta a história de uma rena do trenó de Papai Noel, cujo focinho acendeu-se como uma lâmpada vermelha e que tornou-se o animal a liderar o caminho do trenó.
Nanas de Maria – tipo de música espanhola de natal que descreve o relacionamento de Maria e Jesus no Natal.
Tu scendi dalle stelle – música natalina italiana que descreve o Menino Jesus como descido das estrelas para a gruta fria para nos salvar.
Essas canções, suas traduções e melodias são encontradas facilmente na Internet. Vale a pena conferir.
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