A campanha em favor da “ficha limpa” mobilizou, em todo oBrasil, milhões de pessoas que acreditaram na possibilidade da decência e daética na política. Em Brasília houve quem apostou que seria mais fácil a vacavoar do que esse projeto de lei de iniciativa popular passar pelo CongressoNacional. Surpresa! A vaca não voou, mas o projeto passou, a lei já foisancionada e está em vigor. Agora é vigiar e clamar pela sua aplicação correta.O País agradece a tantos cidadãos que se empenharam para barrar, antes das urnas,pretendentes a mandatos políticos que não podem ostentar idoneidade moral paragovernar ou legislar. Será bom para o Brasil. Muito bom.
Mas, sejamos justos. Nem todos os políticos foram ou são“fichas sujas”. Muitos desempenharam com dignidade e grandeza a sua missão. Nopassado e no presente. Quero lembrar um deles, Tomás Morus, um político inglês.Não é que faltem exemplos também entre nós, mas porque esse é emblemático.Nasceu em Londres, em 1478; estudou Direito em Oxford, casou, teve 3 filhas e umfilho. Homem de vasta cultura, amigo de notáveis protagonistas do Renascimento,escreveu vários livros sobre a arte de governar e em defesa da religião – eracatólico fervoroso. Em 1504 foi eleito para o Parlamento e o rei Henrique VIIIconfiou-lhe importantes missões diplomáticas e comerciais; chegou a ser membrodo Conselho da Coroa, vice-tesoureiro do Reino e, em 1523, presidente da Câmarados Comuns. Em 1529 foi nomeado chanceler de Sua Majestade.
Quando o soberano, não atendido pelo papa em sua pretensãode divórcio, resolveu ser, ele mesmo, o chefe na Igreja da Inglaterra,separando-a de Roma, o fiel chanceler começou a ter problemas. Não aprovando aingerência do rei na Igreja e não aderindo à sua política discriminatóriacontra os católicos, Tomás Morus renunciou ao cargo e retirou-se da vidapública, para sofrer, com sua família, o ostracismo e a pobreza. Foiencarcerado na Torre de Londres e submetido a várias formas de pressão paraprestar juramento de fidelidade ao rei. Preferiu permanecer fiel à suaconsciência e, com firmeza, denunciou no tribunal o despotismo do soberano.Condenado à morte por “infidelidade ao rei”, foi decapitado no dia 6 de julhode 1535.
Da prisão, escreveu à filha Margarida: “Fica tranquila,minha filha, e não te preocupes com o que possa me acontecer neste mundo. (…)Até agora, Deus me deu a graça de tudo desprezar, do fundo do coração –riquezas, rendimentos e a própria vida – ao invés de jurar contra minhaconsciência”. E manteve esta posição com serena firmeza. Não traiu aconsciência por vantagens, poder, riquezas, prestígio, nem passou por cima daverdade e da decência, mesmo para salvar a própria vida. Permaneceu “fichalimpa”, sabendo que isso lhe custava a cabeça. Literalmente.
Em 1935, quatro séculos depois de seu martírio, o papa PioXI declarou-o “santo” e, no ano 2000, João Paulo II proclamou-o patrono dosgovernantes e políticos. De fato, vários chefes de Estado e de Governo,numerosos dirigentes políticos, além de Conferências Episcopais, haviamapresentado sugestão ao papa, nesse sentido. Tomás Morus foi um políticocomprometido com a verdade e com os valores éticos. O que mais impressionanesse grande homem público é a retidão e a inflexível fidelidade à própriaconsciência. Colaborou com a Autoridade e as instituições, enquanto eramlegítimas; exerceu o poder na medida da justiça, como serviço ao povo e a seupaís. Mas sua grande firmeza de caráter e sua sólida estatura moral não lhepermitiram cair na tentação de usar o poder para sua vantagem e ganhos pessoais.Colocou sua atuação pública ao serviço dos mais pobres e desprotegidos,promoveu a paz social, a educação integral da juventude, a defesa da pessoa eda família. Diante das lisonjas do poder, das honrarias e das riquezas,conservou uma serena jovialidade, inspirada no sensato conhecimento da naturezahumana e da futilidade do sucesso. Manteve o bom humor, mesmo diante daiminência da morte.
Tomás Morus harmonizou, de forma extraordinária, sua intensavida pública com suas convicções interiores. Um bom político, de fato, não podeseparar-se da verdade, nem dissociar sua ação da moral. A dignidade dos homenspúblicos é certificada por uma boa consciência. Como explicar, diante do povo,vantagens desonestas, sem afundar ainda mais no charco da mentira e dadesonestidade? A vida de Tomás Morus é um belo exemplo de ética na política.Coisas que ficaram no passado? Não creio. É o mesmo anseio manifestado, aindahoje, pelos milhões de brasileiros que apoiaram o projeto de lei de iniciativapopular “ficha limpa”. O futuro confirmará, com toda a certeza, que esta leiterá contribuído muito para melhorar o nível ético da política brasileira.
Estamos num ano eleitoral e o povo brasileiro é convidado,mais uma vez, a fazer um discernimento acurado sobre candidatos e partidos,para escolher e votar. Esta é mais uma boa chance dos cidadãos para deixarclaro quais rumos querem ver na política do nosso País. Tomás Morus tem algo aensinar e nos lembra, sobretudo, que a verdade e a ética são inegociáveis. Nãotêm preço. Também alerta que a corrupção da consciência é uma vilania que podelevar ao despotismo e às maiores injustiças. Com freqüência, clama-se porreformas profundas para melhorar a política do País e elas, certamente, sãonecessárias. Porém, mais necessários ainda, na condução da vida política de umpovo são os políticos íntegros. Chegou a hora de conhecê-los e de votar neles.