Formação

O núcleo da mensagem do Santo Padre: o mistério de Deus

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O Santo Padre, Bento XVI, esteve conosco e nos trouxe profundas e necessárias reflexões que hão de nortear nosso empenho evangelizador e marcarão definitivamente os trabalhos da Quinta Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe. Se me perguntassem sobre o núcleo de sua pregação, eu responderia sem receio de errar: o mistério de Deus. O Santo Padre, refletindo sobre a fé em Cristo e sobre a vida n’Ele, formula um questionamento muito freqüente em rodas historicistas: “esta prioridade – dada a Cristo e à vida n’Ele – não poderia ser uma fuga para o intimismo, para o individualismo religioso, um abandono da realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo, e uma fuga da realidade para um mundo espiritual?” O historicismo é uma corrente de pensamento que penetrou profundamente a mentalidade contemporânea e que pretende tudo explicar pelo dinamismo imanente à história, negando qualquer dimensão de transcendência à existência humana. Sua forma radical é o marxismo que não apenas nega qualquer transcendência, mas, mais ainda, considera a religião a alienação das alienações, seu compêndio definitivo, expressão da miséria histórica na qual a humanidade está aprisionada. No marxismo o mundo real é o mundo do econômico, do social e do político. É de Marx esta afirmação: “a miséria religiosa – entenda-se a religião – é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra essa miséria” ou, seja, a religião é o sonho do homem que não se encontrou e revela sua inconformidade com essa situação de sofrimento. É protesto, protesto inútil porque funciona como consolo que anestesia a dor de um mundo injusto, cancelando toda possibilidade de tomada de consciência das condições desumanas da existência, que haveria de ensejar a luta pela mudança da realidade negadora da dignidade humana: “a religião é o ópio do povo”. Eliminar a consciência religiosa é condição para devolver o ser humano à realidade. Consciência religiosa é consciência alienada. Interessante que a crítica freudiana da religião caminha no mesmo sentido: a religião é ilusão, ilusão do desejo que recusa sua finitude. A diferença é que Freud não propõe nenhuma alternativa para o sonho, para a ilusão religiosa. O ser humano deve amadurecer e aceitar sua condição de finitude resignadamente. Marx tem uma inabalável fé na realização do ser humano nessa terra pela implantação do socialismo quando de cada um se exigirá o que lhe for possível e a cada um será oferecido o necessário. Virá o dia em que todos serão iguais e viverão em plena comunhão de todos os bens, aqui, neste mundo. Tudo, na experiência humana, que não conduzir para a nova sociedade, é alienação. A ação política é a ação humana por excelência e toda a ação que não tiver a marca política revolucionária é alienante. O Santo Padre já havia feito referência à interpretação marxista da religião na sua encíclica “Deus Caritas est”, reconhecendo algo de verdade na crítica marxista que considerava as obras de caridade uma forma de eternizar as condições injustas a que são submetidos os pobres, vítimas da injustiça social: “Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenção das condições existentes, seria necessário criar uma ordem justa, na qual todos receberiam a sua respectiva parte de bens da terra e, por conseguinte, já não teriam necessidade das obras de caridade. Algo de verdade existe – devemos reconhecê-lo – nesta argumentação, mas há também, e não pouco, de errado”. O papa reconheceu também que só lentamente os representantes da Igreja “foram se dando conta de que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade”. Mas voltemos ao discurso do papa na abertura da V Conferência, a propósito do que é a realidade. Eis sua reflexão: “que é a realidade? Que é o real? São realidade apenas os bens materiais, os problemas sociais, econômicos e políticos? Aqui está precisamente o grande erro das tendências dominantes no último século, erro destrutivo, como demonstram os resultados tanto dos sistemas marxistas como também dos capitalistas. Falsificam o conceito de “realidade” com a amputação da realidade fundante e por isso decisiva, que é DEUS. Quem exclui Deus de seu horizonte falsifica o conceito de “realidade” e, conseqüentemente, só pode terminar em caminhos equivocados e com receitas destrutivas”. E continua: “a primeira afirmação fundamental é, pois, a seguinte: só quem reconhece a Deus, conhece a realidade e pode responder a ela de modo adequado e realmente humano. A verdade desta tese resulta evidente ante o fracasso de todos os sistemas que colocam Deus entre parêntesis”. Essa reflexão do Santo Padre me faz lembrar o que aconteceu recentemente em uma reunião de Igreja em que um participante tendo falado, com entusiasmo carismático, da experiência de Deus em seu movimento, deveu ouvir de um sociólogo que conduzia a partilha algo assim: “vamos agora colocar os pés no chão”, ou seja, vamos mergulhar na realidade. Interessante, realmente o Santo Padre colocou a V Conferência diante do fundamento último de toda a realidade, o real por excelência, Deus. Mas, que Deus? Como conhecer Deus? Eis o núcleo do discurso do Santo Padre: “somente Deus conhece Deus, somente seu Filho, que é Deus, Deus verdadeiro, o conhece. E Ele, ‘que está no seio do Pai, O revelou'( Jo 1,18). Donde a importância única e insubstituível de Cristo para nós, para a humanidade. Se não conhecemos a Deus em Cristo e com Cristo, toda a realidade se converte em um enigma indecifrável: não há caminho e, não havendo caminho, não há vida nem verdade.” Aqui está a identidade da Igreja, sua convicção profunda, sua razão de ser, a específica contribuição que ela tem a oferecer ao mundo: o mistério de Deus tal como Jesus o revela no Espírito. (continua).

Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues

Arcebispo de Sorocaba (SP)

Fonte: CNBB


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