Ao longo da história da Igreja, diversos cismas e crises eclesiais desencadearam mudanças significativas e, por vezes, decisões necessárias para sustentar a Barca de Cristo a navegar até à contemporaneidade eclesial, enfrentando os mares revoltos da modernidade. Durante a pandemia, na bênção Urbi et Orbi (2020), o Papa Francisco utilizou a metáfora da barca para descrever a situação enfrentada pela humanidade. O pontífice afirmou: «Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas, ao mesmo tempo, importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento».
No entanto, surge uma pergunta inquietante: será que os tripulantes desta Igreja conseguem aperceber-se de que estão na mesma Barca? Ou, pelo contrário, não têm consciência de que estão a remar em sentidos opostos, fundamentando-se em separatismos extremistas eclesiais, entre o conservadorismo e o progressismo?
Um paradoxo filosófico inscrito na mitologia grega ajuda-nos a reflectir sobre esta crise: a figura do «Navio de Teseu». Este dilema explora a identidade e a continuidade ao longo do tempo, questionando a natureza e a essência da mudança. Segundo a lenda, o Navio de Teseu foi preservado como um memorial da jornada heroica de Teseu após o regresso vitorioso a Creta. Ao longo dos séculos, os cidadãos atenienses mantiveram o navio em exposição e, devido à necessidade, substituíram gradualmente as partes deterioradas por novas. Eventualmente, perceberam que nenhum dos componentes do navio original permanecia. Deste processo surgiu uma questão: se todas as partes de um objecto são substituídas ao longo do tempo, ele ainda é o mesmo?
No caso do Navio de Teseu, a identidade material podia estar associada ao material físico original. Contudo, ao perder todas as suas peças, essa identidade cessaria de existir. Por outro lado, numa perspectiva funcional, a identidade poderia residir na forma e na funcionalidade: enquanto o navio pudesse cumprir o seu propósito original, como navegar, continuaria a ser o mesmo.
De forma paralela, a Barca da Igreja encontra a sua identidade na vitoriosa Ressurreição de Cristo. A essência mais profunda e fundamental da Barca reside no mistério pascal, como um anúncio vivo da missão de navegar até aos confins da Terra, proclamando a força gloriosa da Igreja como Barca de Cristo. Contudo, tal como o Navio de Teseu, a história da Igreja levou-a a substituir gradualmente as suas peças para se manter inserida nos diversos ciclos evolutivos da sociedade e enfrentar os desafiantes mares navegados. Desde as reformas hierárquicas, litúrgicas e eclesiais, a Igreja ajustou-se para não perder a sua essência e finalidade: anunciar a vitoriosa Ressurreição de Cristo.
Tal como no Navio de Teseu, essas mudanças geraram crises filosóficas e teológicas. Dentro da mesma Barca, a tripulação discute: «A verdadeira Barca é aquela com as peças antigas!» ou «Não podemos abandonar os elementos que nos constituem, senão perderemos a nossa identidade!». Em contraponto, a parte progressista responde: «Para manter a Barca a navegar, precisamos de mudar, de trocar as peças para avançarmos. Ou assumimos os riscos da mudança ou seremos um imóvel troféu arquitectónico, com um mastro representando um Homem Crucificado, apenas narrado pela história de uma sociedade em mudança».
O Navio de Teseu não é apenas um teste lógico, mas também um espelho das nossas concepções de mudança, continuidade e significado. Para a Igreja, o limiar entre o conservadorismo e o progressismo levanos a considerar a necessidade da mudança para que a Barca continue a navegar sem perder a essência da sua existência: anunciar a vitória pascal.
Diferente do navio ateniense, a Igreja é uma Barca viva que não pode existir na estagnação. Tampouco pode esquecer a sua originalidade. A sua missão final é anunciar o Evangelho até que todos os cantos da Terra compreendam o sentido da sua existência. Para isso, é necessário um renovado vigor nas suas estruturas, de modo a suportar as intempéries, as tempestades e as adversidades dos tempos. Sem esquecer quem somos, devemos continuar a remar na mesma direcção, conscientes de que estamos todos na mesma Barca.
Marcelo Souza
Comunidade de Aliança
Seminarista do Seminário Conciliar de Braga – Portugal