Filha,
Após dezesseis semanas tendo o privilégio de ser sua casa, não víamos a hora de te chamar pelo nome. Na recepção da clínica peguei o rosário e, antes de concluir a primeira Ave Maria, me chamaram para a sala de ultrassonografia.
O exame foi mais uma prova de que nada está sob nosso controle, você nos ensina isso a cada dia. Tapava o sexo com a mãozinha, brincando novamente com as nossas expectativas. Após revirar minha barriga, satisfeita com a prova que queria, a médica escreveu em um papel o seu sexo para que eu pudesse ler junto do seu pai – que não aguentou esperar até chegar em casa e me fez ler no estacionamento mesmo: MENINA, em letras maiúsculas, sublinhando a última sílaba, para ninguém duvidar.
Mas a sua existência começou bem antes disso, e queria te contar…
Olhos vivos, negros e enormes, fixos nos meus, foi assim que sonhei com você pela primeira vez, há quinze anos. Eu era só uma menina sonhadora de franjinha e cabelos ondulados que ainda morava com a sua avó, a 211 quilômetros do seu futuro pai, e você já estava em mim.
Mas essa menina foi crescendo, sonhando cada vez menos com uma família e mais consigo mesma. Eu planejava morar na capital, cursar jornalismo, morar sozinha e trabalhar com a escrita. Um dia acordei aos 18 anos na minha casa de três quartos em uma vila sem saída, sozinha e cansada, e lembrei que já tinha tudo isso, mas pela primeira vez entendi que não era o suficiente.
Nossos sonhos são feitos para caberem bem mais do que nós mesmos. Foi aí que deixei o Amor sonhar comigo, foi aí que encontrei a mim mesma, foi aí que encontrei seu pai, e foi aí que reencontrei você.
Filha, você desperta em mim o que há de mais profundo em meu coração, a necessidade de amar, que sempre esteve em mim. Um amor de entranhas, cujos órgãos para te permitir crescer são capazes de se amontoarem pra não te apertar.
Um amor que ainda estou descobrindo, onde o primeiro pensamento do dia é você, e não mais eu mesma. Um amor que entende o sentido da espera, e passa a valorizar cada dia e cada semana com a grande vitória que é te ver crescer.
Um amor que não tem nenhuma segurança pra lhe dar além dele mesmo, e do desejo de lhe ensinar, durante a sua vida, a também amar e deixar-se amar. Hoje sonhei novamente com você e levantei mais cedo pra te dizer isso: estarei aqui quando você acordar e abrir novamente seus olhos vivos, negros e enormes, fixos nos meus.
Mamãe.
Larissa Moura | Missionária da Comunidade de Aliança Shalom
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