Após mais de 400 anos de sua morte a obra literária de William Shakespeare continua atraindo inúmeros leitores por todo o mundo. Suas obras, como, por exemplo, Otelo, Hamlet, Rei Lear e Romeu e Julieta continuam, mesmo depois de tanto tempo, sendo encenadas e influenciando uma série de autores. Um dos maiores escritores de todos os tempos e um dos fundamentos de toda a literatura de língua inglesa, Shakespeare produziu trinta e oito peças entre comédias e tragédias e em torno de cento e cinquenta sonetos. O Bendita Leitura de hoje homenageia este escritor com uma de suas mais famosas obras, Romeu e Julieta. Não apenas homenageia, mas pretende averiguar qual o motivo de sua perpetuidade e de seu brilhantismo. Para tanto não apenas esta edição, mas praticamente até o final deste ano, um dos autores contemplados será o dramaturgo inglês, por meio da apresentação de suas mais importantes obras.
Quem foi Shakespeare?
Sabe-se muito pouco acerca de sua vida. Shakespeare nasceu em 1564, numa cidade próxima a Birmingham, e faleceu em 1616, na mesma cidade. Com relação ao momento histórico pelo qual passava a Inglaterra no tempo de Shakespeare, Otto Maria Carpeaux nos diz:
A Inglaterra está no auge do poder político, prepara-se o imperialismo colonial, a prosperidade econômica satisfaz a todas as classes da sociedade, a aristocracia culta, a burguesia abastada, o povo, ainda um pouco grosseiro, mas de inteligência viva e gosto espontâneo; e o centro dessa vida febril e feliz é a barulhenta Londres. (…). No conceito convencional da história inglesa, Shakespeare é a encarnação da força abundante da época da rainha Elizabeth.[1]
A ascensão artística de Shakespeare está muito associada também ao próprio Império inglês, que, em sua época, era uma das maiores potências. Shakespeare ou o Bardo, como costuma ser designado, chegou a Londres, já casado, em 1585 e começou uma carreira bem-sucedida de ator, escritor, dramaturgo e proprietário de uma companhia de teatro. Em Londres, portanto, Shakespeare consolidou sua carreira, tornando-se em sua época um dos escritores mais populares da Inglaterra.
A sua obra costuma ser dividida em quatro fases. A primeira delas começa em 1590, quando o dramaturgo escreveu muitas comédias, como A Megera Domada e A Comédia dos Erros. A segunda fase inicia-se em 1595 com a tragédia Romeu e Julieta e com a escrita das suas principais peças históricas, como Ricardo III. A terceira fase vai de 1600 até 1608 e é também denominada período sombrio, onde surgem as principais obras do escritor, como Hamlet, Rei Lear e Macbeth. O último período da obra de Shakespeare vai de 1608 até 1613, quando o escritor inglês escreveu sobretudo tragicomédias, além de sua última peça, A tempestade.
Escolhemos iniciar o nosso estudo sobre Shakespeare com Romeu e Julieta, pois, além de ser sua mais popular obra, sendo uma das mais encenadas em todo o mundo e tendo inúmeras adaptações cinematográficas, é também, em sua construção interna, uma das que melhor representa o estilo shakespeariano.
Romeu e Julieta
A obra Romeu e Julieta, escrita por volta de 1595 dá início as grandes tragédias de William Shakespeare. A história de amor entre os jovens Romeu e Julieta perpetuada através dos séculos insere-se num drama onde amor e ódio dialogam constantemente e onde os contrários no fundo aparecem de certo modo como semelhantes. Estruturalmente, a peça apresenta cinco atos (ou capítulos, digamos) com grande densidade, pois vemos o extremo de dois sentimentos contrários digladiarem-se constantemente. Antes de adentrarmos no enredo da tragédia, é importante entendermos o quê, de fato, é o gênero tragédia. Sobre isso Aristóteles, em sua Poética, diz-nos:
Na tragédia, a ação é apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores. Suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem por efeito obter a purgação dessas emoções.[2]
Essa é a definição clássica do gênero literário tragédia a partir da perspectiva da ação. O que para nós é relevante é entendermos a parte inerente desse gênero: o jogo entre contrários ou o aparecimento de emoções ou sentimentos extremos. Isso se verifica em Romeu e Julieta, onde o amor entre os jovens tem sob pano de fundo o ódio entre duas tradicionais famílias italianas, os Montecchio e os Capuleto. A tragédia se passa na cidade italiana de Verona e uma das suas primeiras cenas é o diálogo entre o já enamorado Romeu e o seu primo. Através daquele podemos testemunhar a grande beleza e poeticidade das expressões relativas ao amor:
ROMEU: Do amor é sempre assim a transgressão. As dores próprias pesam-me no peito; (…) O amor é dos suspiros a fumaça; puro é fogo que os olhos ameaça; revolto, um mar de lágrimas de amantes… Que mais será? Loucura temperada, fel ingrato, doçura refinada. Adeus, primo.[3] (ato I, cena I, p.30).
De fato, para conseguir se aproximar do amor, que se identifica com a personagem de Julieta, Romeu terá de transgredir o ódio de sua família, os Montecchio, em relação à família de Julieta. Importante também relatar que antes mesmo da entrada de Romeu na peça, acontece uma briga entre os partidários das duas famílias na praça pública, dentre eles Tebaldo, primo de Julieta, sendo necessária a intervenção do príncipe da cidade, autoridade maior de Verona, para encerrar a disputa.
Com relação à família de Julieta, os Capuleto, a situação é mais delicada. Julieta com catorze anos é filha única e já objeto das pretensões dos pais com relação a um possível casamento com o conde Páris. Julieta opõe resistências aos desígnios dos pais quando conhece Romeu. Assim ela se dirige a ele.
JULIETA: Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio? (…) Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume. Romeu, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo, fica comigo[4]. (ato II, cena II, p.39).
Julieta faz alusão ao conflito entre a sua família e a de Romeu, pedindo que este retire o seu sobrenome a fim de que os dois possam viver juntos em paz. Vemos através das falas de ambos dos principais personagens que o drama da peça se concentra neles dois. São, assim, personagens bem construídos, que, de fato, dão dinamicidade à obra. Mas o que também é importante relatar é o papel dos coadjuvantes. Evidentemente, a peça não poderia acontecer se apenas tivesse o casal. O clima de transgressão e de tensão oriundo do amor proibido entre Romeu e Julieta é compartilhado com outros personagens importantes, como Mercúcio, amigo de Romeu, que é morto por Tebaldo, primo de Julieta, a própria ama de Julieta, que é responsável por aconselhar e, de algum modo, intermediar a relação entre o jovem casal, Frei Lourenço, padre e confessor de Romeu e Julieta, que é figura fundamental no término da peça.
Diante disso podemos elencar como destaque na peça a profunda unidade que há entre todas as partes da tragédia, aliando a isso uma ótima caracterização de todos os personagens. Como falamos é um drama que se concentra no amor entre Romeu e Julieta, que podemos caracterizá-lo como ideal e pertencente quase a um plano divino, mas, ao mesmo tempo que se concentra no casal, o drama se distende ou se prolonga através dos personagens secundários, que, podemos dizer, pertencem ao mundo cotidiano. Sobre isso o crítico canadense Northrop Frye comenta:
Shakespeare consegue seu feitio imitativo elevado transformando a luta entre os dois planos de existência, o primeiro como nosso próprio mundo ou pior, o segundo encantado e idílico.[5]
Em suma, o embate e aproximação entre contrários, amor e ódio, distribuídos através da caraterização dos personagens possibilitam o sucesso da tragédia. Romeu e Julieta passam a ter encontros escondidos no jardim da casa dos Capuleto. Os dois, passado algum tempo, decidem às escondidas se casar na capela onde Frei Lourenço, confidente de ambos, celebra. Dessa forma, o frade franciscano contagiado pela alegria dos dois amantes, diz a eles:
FREI LOURENÇO: Vamos, vamos; simplifiquemos o ato. Aqui, sozinhos, não pretendo deixar-vos um momento, sem que a Igreja celebre o casamento.[6] (ato III, cena I, p. 48)
O casamento às escondidas entre Romeu e Julieta encerra uma parte da peça aparentemente positiva onde a tragédia ou o conflito em si ainda está atenuado. Este, no entanto, virá à tona quando Romeu é condenado ao exílio por ter matado o primo de Julieta, Tebaldo, após este ter matado o amigo de Romeu, Mercúcio. A partir disso o ódio entre as famílias se inflama, obstruindo assim a felicidade do casal. Mas o principal empecilho é, de fato, o casamento agendado de Julieta com o conde Páris. Conforme se aproxima a data do casamento, as aflições de Julieta aumentam, uma vez que também o seu amado Romeu está exilado. Interessante vermos a revolta do senhor Capuleto com sua filha, que se mostra bastante triste ante os acontecimentos inevitáveis:
CAPULETO: E agora que arranjei um gentil-homem de nobre parentesco, jovem, rico, de fina educação, de qualidades excepcionais, lá vem uma coisinha choramingas, uma boneca de lamúrias, a declarar-me: “Sou muito nova”[7]. (ato III, cena V, P. 59-60).
Na tentativa de barrar o casamento, Julieta cria um pretexto de que é muito nova para se casar. O casamento está marcado para quinta-feira e Julieta, no final da terça-feira, recebe essa declaração enraivecida de seu pai. O curto intervalo de tempo é inversamente proporcional ao aumento da tensão, que é a base para que haja, de fato, a tragédia. O fim se aproxima e três personagens irão ser responsáveis pelo desfecho: além de Romeu e Julieta, Frei Lourenço.
A novidade de Shakespeare
O mais interessante dessa peça teatral é percebermos a mudança que há entre a tragédia moderna de Shakespeare e a tragédia clássica precedente. Já não são mais o destino ou os desígnios dos deuses responsáveis pelas tensões ou pela tragédia em si, mas esta é resultada das decisões dos principais personagens, que são, como vimos, muito bem caracterizados. Sobre isso, Harold Bloom, crítico norte-americano, comenta:
Antes de Shakespeare, os personagens literários são, relativamente, imutáveis. Homens e mulheres são representados, envelhecendo e morrendo, mas não se desenvolvem a partir de alterações interiores, e sim em decorrência de seu relacionamento com os deuses. Em Shakespeare, os personagens não se revelam, mas se desenvolvem, e o fazem porque têm a capacidade de se auto-recriarem. Às vezes, isso ocorre porque, involuntariamente, escutam a própria voz, falando consigo mesmos ou com terceiros. Para tais personagens, escutar a si mesmos constitui o nobre caminho da individuação.[8]
De fato, Shakespeare inaugura um original modo de fazer tragédia, em que a reflexão e os dramas interiores dos personagens fazem explodir sentimentos e emoções muito peculiares. A individuação, dita por Harold Bloom, irá ser conseguida, sobretudo, pelas próximas peças, como Rei Lear, Macbeth e, principalmente, Hamlet. O que se apresenta em Romeu e Julieta é um fértil terreno conflituoso de escolhas humanas, onde vemos as decisões dos homens, sobretudo, daqueles que possuem mais poder, como no caso das duas famílias em relação ao jovem casal, afetarem os que lhe são subordinados, provocando tensões e transgressões.
Dessa forma, o embate entre o plano ideal do amor entre Romeu e Julieta não cessará de se debater contra o plano cotidiano, comum ou habitual, representado pelos interesses e pelas disputas de poder entre as duas famílias. O surpreendente equilíbrio encontrado entre os dois planos coincidirá com a paz na cidade e coincidirá também com o fim da tragédia. Uma paz bem shakespeariana: uma paz sombria.
[1] CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental: O Barroco e o Classicismo por Carpeaux. Volume 4. São Paulo: Leya, 2012, p. 183-184.
[2] ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Ana Maria Valente. Lisboa: Calouste Gulbekian, 2004, p.08.
[3] SHAKESPEARE, William. Tragédias: teatro completo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
[4] SHAKESPEARE, William. Tragédias: teatro completo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
[5] FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica: quatro ensaios Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, p. 50.
[6]SHAKESPEARE, William. Tragédias: teatro completo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
[7] Idem, p.59-60.
[8] BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Tradução de José Robert O ´Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, p. 2000, p.19.
Ficha
Romeu e Julieta
William Shakespeare
Pia Sociedade de São Paulo
Editora Paulus
136 páginas
Boa Leitura!